segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

“Grandes óperas não toleram nem um minuto de atraso... Bom motivo para não ir.” Parte 2

Sento para escrever este artigo sob o efeito da leitura de um “box”, publicado em 9/01/2004, no caderno Folha Ciência”, do jornal Folha de São Paulo, que, por estar em perfeita consonância com o artigo anterior e com o que eu escreverei, apresento-o ipsis literis[1]

 

 

"Sopranos cantam alto, mas perdem clareza, diz estudo

 

       Joe Wolfe, da Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália, mostrou, com a ajuda da física, por que é difícil entender a letra cantada pelas sopranos[2]  numa ópera.

     Segundo o pesquisador, essas cantoras foram treinadas para fazer sua voz alcançar sem microfones um teatro inteiro e conseguem a façanha aumentando dramaticamente o volume da voz, em detrimento da clareza do que é cantado. O estudo saiu na “Nature” de ontem.”

 

 

            Estranha-me o fato de o "Folha Ciência" alardear o resultado dos estudos do supracitado cientista australiano, sendo que, no Caderno "Sinapse" (também da Folha de São Paulo), de 30/09/2003, João Batista Natali já defendia o mesmo ponto de vista, diga-se de passagem, sem nenhuma singularidade. Fato é que, há muito, já conhecíamos os motivos que impedem a inteligibilidade do texto verbal da "música lírica", tanto que, lançando mão dos estudos lingüísticos, na primeira parte deste artigo, fiz a mesma afirmação que Joe Wolfe. Todavia, sabemos que quanto mais disciplinas puderem descrever um fenômeno, maior grau de cientificidade será conferido aos resultados obtidos por estudiosos. Deste ponto de vista, é muito bem-vinda a afirmação de Joe Wolfe.

            A palavra-chave que detonou a confecção da segunda parte deste artigo é "microfone" :  "para fazer sua voz alcançar sem microfones um teatro inteiro".

            Sabemos que a energia elétrica chegou ao Brasil em 1927, e tal advento, dentre outras coisas, revolucionou o mercado fonográfico, pois possibilitou a melhoria da qualidade da reprodução e da gravação de discos, por meio das gravações elétricas, em contraponto às gravações mecânicas, além de viabilizar as emissões radiofônicas. Não foi à toa que as décadas de 30 e 40 foram alcunhadas de "Era de Ouro da MPB", por consolidarem a forma da canção popular com que lidamos até hoje. Portanto, a construção da canção popular brasileira passa por esse pequeno aparelho que transforma energia sonora em energia elétrica, possibilitando, dessa maneira, a amplificação da voz humana.

            No entanto, os microfones que reproduziam a voz humana, mantendo suas características originais, ou seja, os microfones de alta fidelidade, surgiram somente na década de 50. O leitor já deve estar desconfiando de que tal fato tem a ver com a Bossa Nova. Pois é exatamente aí que eu quero chegar. Não fosse o advento do microfone de alta fidelidade, João Gilberto não lograria êxito ao instaurar um novo modelo de emissão vocal na canção popular brasileira. Os mais desavisados dirão que João canta da maneira que canta porque não tem voz. Mentira! João Gilberto, na década de 50, era componente de um grupo vocal chamado "Garotos da Lua", grupo no qual, além de cantar, era responsável por tirar de ouvido os arranjos dos grupos vocais estadunidenses e passá-los para os outros componentes . Na mesma época, "fazia cover" de Orlando Silva, ou seja, imitava o "Cantor das Multidões", aquele não fazia a menor cerimônia em projetar seus "dós de peito" em suas históricas apresentações, cuja platéia era formada por verdadeiras turbas.

            Portanto, João lançou mão da tecnologia para imprimir uma nova maneira de cantar que eliminava os excessos virtuosísticos dos aficionados do jazz; que evitava o batimento de ondas sonoras provocado pelos acordes com maior tensão harmônica (acordes popularmente conhecidos como acordes dissonantes) no acompanhamento da voz; que dava identidade ao cantor popular que, à essa época, somente era reconhecido como um grande cantor caso sua maneira de interpretar se aproximasse à dos "cantores líricos". Enfim, João, com seu inovador modo de cantar, aproximava o canto da fala; deixava transparecer a voz que falava por detrás da voz que cantava. Todo o texto verbal era verdadeiramente inteligível. Dessa maneira, João Gilberto, criava efeitos de veridicção, de dizer verdadeiro, pois todos reconheciam em seu canto, situações cotidianas de fala, e tal fato é aquilo que confere  o estatuto  popular à canção. (continua)

 



[1] A primeira parte do presente artigo foi a penúltima publicação deste blog.

[2] Voz feminina de registro mais agudo. Metonimicamente, a cantora que possui esse registro.