Sento para escrever este artigo sob o efeito da leitura de um “box”, publicado em 9/01/2004, no caderno Folha Ciência”, do jornal Folha de São Paulo, que, por estar em perfeita consonância com o artigo anterior e com o que eu escreverei, apresento-o ipsis literis: [1]
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"Sopranos
cantam alto, mas perdem clareza, diz estudo Joe Wolfe, da Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália, mostrou,
com a ajuda da física, por que é difícil entender a letra cantada pelas
sopranos[2] numa ópera. Segundo o pesquisador, essas
cantoras foram treinadas para fazer sua voz alcançar sem microfones um teatro
inteiro e conseguem a façanha aumentando dramaticamente o volume da voz, em
detrimento da clareza do que é cantado. O estudo saiu na “Nature” de ontem.” |
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Estranha-me
o fato de o "Folha Ciência" alardear o resultado dos estudos do
supracitado cientista australiano, sendo que, no Caderno "Sinapse"
(também da Folha de São Paulo), de 30/09/2003, João Batista Natali já defendia
o mesmo ponto de vista, diga-se de passagem, sem nenhuma singularidade. Fato é
que, há muito, já conhecíamos os motivos que impedem a inteligibilidade do
texto verbal da "música lírica", tanto que, lançando mão dos estudos
lingüísticos, na primeira parte deste artigo, fiz a mesma afirmação que Joe
Wolfe. Todavia, sabemos que quanto mais disciplinas puderem descrever um
fenômeno, maior grau de cientificidade será conferido aos resultados obtidos
por estudiosos. Deste ponto de vista, é muito bem-vinda a afirmação de Joe
Wolfe.
A
palavra-chave que detonou a confecção da segunda parte deste artigo é "microfone" : "para fazer sua voz alcançar sem
microfones um teatro inteiro".
Sabemos
que a energia elétrica chegou ao Brasil em 1927, e tal advento, dentre outras
coisas, revolucionou o mercado fonográfico, pois possibilitou a melhoria da
qualidade da reprodução e da gravação de discos, por meio das gravações
elétricas, em contraponto às gravações mecânicas, além de viabilizar as
emissões radiofônicas. Não foi à toa que as décadas de 30 e 40 foram alcunhadas
de "Era de Ouro da MPB", por consolidarem a forma da canção popular
com que lidamos até hoje. Portanto, a construção da canção popular brasileira
passa por esse pequeno aparelho que transforma energia sonora em energia
elétrica, possibilitando, dessa maneira, a amplificação da voz humana.
No
entanto, os microfones que reproduziam a voz humana, mantendo suas
características originais, ou seja, os microfones de alta fidelidade, surgiram
somente na década de 50. O leitor já deve estar desconfiando de que tal fato
tem a ver com a Bossa Nova. Pois é exatamente aí que eu quero chegar. Não fosse
o advento do microfone de alta fidelidade, João Gilberto não lograria êxito ao
instaurar um novo modelo de emissão vocal na canção popular brasileira. Os mais
desavisados dirão que João canta da maneira que canta porque não tem voz.
Mentira! João Gilberto, na década de 50, era componente de um grupo vocal
chamado "Garotos da Lua", grupo no qual, além de cantar, era
responsável por tirar de ouvido os arranjos dos grupos vocais estadunidenses e
passá-los para os outros componentes . Na mesma época, "fazia cover"
de Orlando Silva, ou seja, imitava o "Cantor das Multidões", aquele
não fazia a menor cerimônia em projetar seus "dós de peito" em suas
históricas apresentações, cuja platéia era formada por verdadeiras turbas.
Portanto,
João lançou mão da tecnologia para imprimir uma nova maneira de cantar que
eliminava os excessos virtuosísticos dos aficionados do jazz; que evitava o
batimento de ondas sonoras provocado pelos acordes com maior tensão harmônica
(acordes popularmente conhecidos como acordes dissonantes) no acompanhamento da
voz; que dava identidade ao cantor popular que, à essa época, somente era
reconhecido como um grande cantor caso sua maneira de interpretar se
aproximasse à dos "cantores líricos". Enfim, João, com seu inovador
modo de cantar, aproximava o canto da fala; deixava transparecer a voz que
falava por detrás da voz que cantava. Todo o texto verbal era verdadeiramente
inteligível. Dessa maneira, João Gilberto, criava efeitos de veridicção, de
dizer verdadeiro, pois todos reconheciam em seu canto, situações cotidianas de
fala, e tal fato é aquilo que confere o
estatuto popular à canção. (continua)
[1] A
primeira parte do presente artigo foi a penúltima publicação deste blog.
[2] Voz
feminina de registro mais agudo. Metonimicamente, a cantora que possui esse
registro.