quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Música Popular x Música Erudita – Uma Falsa Polaridade Semântica




            Quando ainda estava na faculdade, entrei na sala da coordenadora do curso e, de chofre, perguntei: qual é a diferença entre música popular e música erudita? A querida professora não tinha resposta para me dar, pois essa falsa polaridade semântica advém muito mais de fatores relacionados a ideologias do que à estrutura musical.

            Em geral, chama-se a música de concerto de música erudita ou clássica. No segundo caso já temos um enorme erro, pois a música clássica é aquela criada no período clássico. Mas o erro é pior ainda, pois se denomina de erudita um tipo de música, como se o termo pudesse delimitar um gênero. Do mesmo modo, quem utiliza o termo música erudita, lança mão da expressão música popular para designar um tipo de música que, em tese, seria uma contraposição à chamada música erudita. Música popular também não define um gênero (samba, rock, baião, xote etc.); talvez uma categoria?

            Gostaria de fazer uma breve reflexão como o prezado leitor. É sabido que Carlos Gomes, o maior nome na ópera brasileira, chegou a ser compositor de modinhas, uma tradição no seu tempo. Além disso, o compositor de “O Guarani” sempre foi muito criticado pelos erros gramaticais e ortográficos dos cartazes que criava para seus concertos.

            Também sabemos que um dos empecilhos para maior divulgação da obra de Villa-Lobos no mundo são os erros de escrita encontrados em suas partituras, tal como notas que não existem em determinados instrumentos. Desnecessário mencionar a paixão do autor das “Bachianas” pela chamada música popular.

            A questão é a seguinte: por que, não obstante os comentários acima, esses compositores são considerados eruditos e Luiz Tatit, por exemplo, cancionista e professor titular da USP, classificado como um músico popular? Sem falar da notória erudição de outros cancionistas brasileiros, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil (ex-ministro da cultura) etc.

            O leitor pode estar intrigado: “mas é a música que é erudita e, não, o músico”. Pensemos por esse viés.

            Erudito se opõe a inculto e, não, a popular, que, na verdade, se opõe a aristocrático e, não, a erudito, isto é: erudito x inculto e popular x aristocrático. Será que a canção de Chico Buarque pode ser incluída numa categoria considerada inculta? E por que seria considerada aristocrata uma música produzida por músicos dependentes de mecenas, que, quase sempre, viviam às custas da aristocracia?

            Na verdade, na oposição Música Popular x Música Erudita subjaz um preconceito muito parecido com o preconceito linguístico. Explico: a música de concerto é sempre grafomediada, ou seja, mediada pela escrita, pela partitura; e a música popular advém da tradição áudio-oral, fato que não quer dizer que o chamado músico popular não estude seu instrumento e/ou estruturação musical.

            Com a sistematização da harmonia funcional para o Jazz, cada vez mais os cancionistas e os músicos populares também se apropriam da tecnologia grafomediada; Tom Jobim é o maior exemplo no âmbito da canção de consumo. Do mesmo modo, a música de concerto passou a fazer experimentações que pouco necessitavam da partitura; o grande exemplo nesse âmbito é Jonh Cage.

Hoje podemos pensar num gráfico cartesiano em que um dos eixos representaria a tradição grafomediada e, o outro, a tradição áudio-oral. A partir disso, poderíamos classificar um compositor, um fonograma, um CD, um DVD, um arranjo, um show, um concerto etc. Tom Jobim utilizava a partitura para compor, mas fazia Bossa Nova. Villa-Lobos utilizava temas do folclore brasileiro. Luiz Cláudio Ramos escreve em partitura os arranjos de CDs e shows de Chico Buarque. Dona Edith do prato canta tocando prato e jamais se aproximou de uma partitura. Graficamente, grosso modo, esses artistas poderiam ser classificados da seguinte maneira:

Penso que, feitos os ajustes necessários ao modelo visual, esse modo de classificar artistas e obras seria mais justo do que o preconceituoso modelo atual que, de acordo com a ideologia adotada, despreza ou desprestigia produções musicais não contíguas à cultura que serviu de referência.  É isso.

(Texto originalmente escrito para a revista “O III Berro”.)

Márcio Coelho é cancionista, licenciado em música, mestre e doutor em linguística, área de concentração: semiótica da canção.