Quando ainda estava na faculdade,
entrei na sala da coordenadora do curso e, de chofre, perguntei: qual é a
diferença entre música popular e música erudita? A querida professora não tinha
resposta para me dar, pois essa falsa polaridade semântica advém muito mais de
fatores relacionados a ideologias do que à estrutura musical.
Em geral, chama-se a música de
concerto de música erudita ou clássica. No segundo caso já temos um enorme
erro, pois a música clássica é aquela criada no período clássico. Mas o erro é
pior ainda, pois se denomina de erudita um tipo de música, como se o termo
pudesse delimitar um gênero. Do mesmo modo, quem utiliza o termo música erudita,
lança mão da expressão música popular para designar um tipo de música que, em
tese, seria uma contraposição à chamada música erudita. Música popular também
não define um gênero (samba, rock, baião, xote etc.); talvez uma categoria?
Gostaria de fazer uma breve reflexão
como o prezado leitor. É sabido que Carlos Gomes, o maior nome na ópera
brasileira, chegou a ser compositor de modinhas, uma tradição no seu tempo.
Além disso, o compositor de “O Guarani” sempre foi muito criticado pelos erros
gramaticais e ortográficos dos cartazes que criava para seus concertos.
Também sabemos que um dos empecilhos
para maior divulgação da obra de Villa-Lobos no mundo são os erros de escrita
encontrados em suas partituras, tal como notas que não existem em determinados
instrumentos. Desnecessário mencionar a paixão do autor das “Bachianas” pela
chamada música popular.
A questão é a seguinte: por que, não
obstante os comentários acima, esses compositores são considerados eruditos e
Luiz Tatit, por exemplo, cancionista e professor titular da USP, classificado
como um músico popular? Sem falar da notória erudição de outros cancionistas
brasileiros, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil (ex-ministro da
cultura) etc.
O leitor pode estar intrigado: “mas
é a música que é erudita e, não, o músico”. Pensemos por esse viés.
Erudito se opõe a inculto e, não, a
popular, que, na verdade, se opõe a aristocrático e, não, a erudito, isto é:
erudito x inculto e popular x aristocrático. Será que a canção de Chico Buarque
pode ser incluída numa categoria considerada inculta? E por que seria
considerada aristocrata uma música produzida por músicos dependentes de
mecenas, que, quase sempre, viviam às custas da aristocracia?
Na verdade, na oposição Música
Popular x Música Erudita subjaz um preconceito muito parecido com o preconceito
linguístico. Explico: a música de concerto é sempre grafomediada, ou seja,
mediada pela escrita, pela partitura; e a música popular advém da tradição
áudio-oral, fato que não quer dizer que o chamado músico popular não estude seu
instrumento e/ou estruturação musical.
Com a sistematização da harmonia
funcional para o Jazz, cada vez mais os
cancionistas e os músicos populares também se apropriam da tecnologia grafomediada;
Tom Jobim é o maior exemplo no âmbito da canção de consumo. Do mesmo modo, a
música de concerto passou a fazer experimentações que pouco necessitavam da
partitura; o grande exemplo nesse âmbito é Jonh Cage.
Hoje podemos pensar num gráfico cartesiano em que um dos eixos representaria a tradição grafomediada e, o outro, a tradição áudio-oral. A partir disso, poderíamos classificar um compositor, um fonograma, um CD, um DVD, um arranjo, um show, um concerto etc. Tom Jobim utilizava a partitura para compor, mas fazia Bossa Nova. Villa-Lobos utilizava temas do folclore brasileiro. Luiz Cláudio Ramos escreve em partitura os arranjos de CDs e shows de Chico Buarque. Dona Edith do prato canta tocando prato e jamais se aproximou de uma partitura. Graficamente, grosso modo, esses artistas poderiam ser classificados da seguinte maneira:
Penso
que, feitos os ajustes necessários ao modelo visual, esse modo de classificar
artistas e obras seria mais justo do que o preconceituoso modelo atual que, de
acordo com a ideologia adotada, despreza ou desprestigia produções musicais não
contíguas à cultura que serviu de referência.
É isso.
(Texto
originalmente escrito para a revista “O III Berro”.)
Márcio
Coelho é cancionista, licenciado em música, mestre e doutor em linguística,
área de concentração: semiótica da canção.