quarta-feira, 22 de novembro de 2023

“Grandes óperas não toleram nem um minuto de atraso... Bom motivo para não ir.”



            Um belo jovem, em sua residência, prepara-se para sair, enquanto, no teatro de ópera, todo o elenco se prepara para entrar em cena. A progressão das duas narrativas é mostrada intermitentemente. A veloz intermitência deixa claro que ambas as narrativas objetivam a pontualidade. Surge, então, a legenda: “Grandes óperas não toleram nem um minuto de atraso”. Aproxima-se o ato derradeiro. Os músicos adentram o palco e o jovem, ao seu automóvel. Todo o elenco já está quase pronto. O automóvel segue em disparada pelas ruas da cidade. As narrativas paralelas delineiam a iminência do início do espetáculo e da chegada do jovem ao seu objetivo, que seria o teatro. No entanto, o automóvel passa, em disparada, na frente do teatro já fechado, quando surge a legenda: “Bom motivo para não ir”.

            Este é o resumo da propaganda de um automóvel, veiculada recentemente, que suscitou o presente artigo, pelos seguintes motivos: O automóvel em questão é um dos atuais símbolos do poder aquisitivo, portanto, objeto de valor desejado pela elite brasileira. A ópera, desde 1597, quando Jacopo Peri escreveu “Dafne” (um misto de teatro e canto) caracteriza-se por ser um espetáculo criado para o deleite da elite “iniciada” e mecenas. Portanto, por que criar um conflito entre interesses comuns? A elite está mais burra a ponto de fazer chacota de  seu próprio objeto-valor construído e utilizado para ostentar a diferença entre a sua capacidade de fruição musical e o gosto popular dos pobres mortais? Enfim, será que, sem nos considerarmos intelectualmente inferiores ou um imbecis desinformados, nós já podemos dizer: Não gostamos de ópera!? Este artigo veio à luz com a intenção de discutir a incompatibilidade entre o grande público e a ópera e/ou o canto lírico. Veio para bradar contra a ditadura da “música universal” (termo que, na verdade, pode ser traduzido por música antiga europeia”), que leva o apreciador da canção popular a creditar que ele admira uma arte menor por ser incapaz de fruir plenamente o canto lírico.

            Concebemos a canção como a extensão estética da fala. Isso quer dizer que, quando falamos, pretendemos que o destinatário compreenda o conteúdo da fala e, não, a sua expressão, que são as curvas de entoação, o timbre, o ritmo etc., isto é, importa mais o que foi dito do que como foi dito aquilo que foi dito. Quando cantamos, ao contrário, damos ênfase à expressão, ou seja, damos mais importância à maneira como é dito aquilo que é dito; todavia, sem prescindir da inteligibilidade do texto verbal.  Temos, então, a fala como a função utilitária e o canto como a função artística da matéria produzida pelo aparelho fonador.

            As partes do corpo envolvidas na produção da fala, portanto, que compõem o aparelho fonador, são os pulmões, traqueia, laringe, epiglote, cordas vocais, glote, faringe, véu palatino, palato duro, língua, dentes, lábios, mandíbula e cavidade nasal. Todo esse aparato utiliza-se das correntes de ar pulmonar, glotal e velar para produzir uma fonte de energia acústica modificada por ações articulatórias. Quando, ao falar, emitimos vogais, permitimos a passagem relativamente livre do ar, e, quando emitimos consoantes, o ar é obstruído de alguma maneira.

Todos esses órgãos, no momento em que servem à fonação, cumprem sua função precípua que é a de falar. E, quando falamos, nossa energia de emissão é pequena, pois visa à audição de um interlocutor que, salvo situações extraordinárias, encontra-se a uma pequena distância. No entanto, quando um cantor de ópera coloca todo esse aparato em função do canto, ele emite a palavra cantada numa intensidade que gira em torno de 90 decibéis para atingir um público de aproximadamente 1500 pessoas e suplantar a energia de emissão de toda a orquestra. Dessa maneira, altera toda a articulação dos órgãos do aparelho fonador e seu modo de obstrução e liberação das correntes de ar. O resultado é o comprometimento da inteligibilidade do texto. Por várias vezes, em cursos e palestras, solicitei ao público que identificasse (sem citar o nome e a autoria da obra) a língua em que é cantada a Ária (cantilena) das “Bachianas Brasileiras Nº 5”, de Heitor Villa-Lobos. Ouvi as repostas mais variadas, mas nunca que se tratava da língua portuguesa. Além disso, as óperas são cantadas geralmente em italiano, alemão e russo, fato que, juntamente com o exposto imediatamente acima, talvez seja a primeira barreira que se põe à frente do destinatário “não iniciado”. (continua nos dois próximos artigos)

·         Artigo originalmente escrito para a revista O III Berro.