Um
belo jovem, em sua residência, prepara-se para sair, enquanto, no teatro de
ópera, todo o elenco se prepara para entrar em cena. A progressão das duas
narrativas é mostrada intermitentemente. A veloz intermitência deixa claro que
ambas as narrativas objetivam a pontualidade. Surge, então, a legenda: “Grandes
óperas não toleram nem um minuto de atraso”. Aproxima-se o ato derradeiro. Os
músicos adentram o palco e o jovem, ao seu automóvel. Todo o elenco já está
quase pronto. O automóvel segue em disparada pelas ruas da cidade. As
narrativas paralelas delineiam a iminência do início do espetáculo e da chegada
do jovem ao seu objetivo, que seria o teatro. No entanto, o automóvel passa, em
disparada, na frente do teatro já fechado, quando surge a legenda: “Bom motivo
para não ir”.
Este
é o resumo da propaganda de um automóvel, veiculada recentemente, que suscitou
o presente artigo, pelos seguintes motivos: O automóvel em questão é um dos
atuais símbolos do poder aquisitivo, portanto, objeto de valor desejado pela
elite brasileira. A ópera, desde 1597, quando Jacopo Peri escreveu “Dafne” (um
misto de teatro e canto) caracteriza-se por ser um espetáculo criado para o
deleite da elite “iniciada” e mecenas. Portanto, por que criar um conflito
entre interesses comuns? A elite está mais burra a ponto de fazer chacota
de seu próprio objeto-valor construído e
utilizado para ostentar a diferença entre a sua capacidade de fruição musical e
o gosto popular dos pobres mortais? Enfim, será que, sem nos considerarmos
intelectualmente inferiores ou um imbecis desinformados, nós já podemos dizer:
Não gostamos de ópera!? Este artigo veio à luz com a intenção de discutir a
incompatibilidade entre o grande público e a ópera e/ou o canto lírico. Veio
para bradar contra a ditadura da “música universal” (termo que, na verdade,
pode ser traduzido por música antiga europeia”), que leva o apreciador da
canção popular a creditar que ele admira uma arte menor por ser incapaz de
fruir plenamente o canto lírico.
Concebemos
a canção como a extensão estética da fala. Isso quer dizer que, quando falamos,
pretendemos que o destinatário compreenda o conteúdo da fala e, não, a sua
expressão, que são as curvas de entoação, o timbre, o ritmo etc., isto é,
importa mais o que foi dito do que como foi dito aquilo que foi dito. Quando
cantamos, ao contrário, damos ênfase à expressão, ou seja, damos mais
importância à maneira como é dito aquilo que é dito; todavia, sem prescindir da
inteligibilidade do texto verbal. Temos,
então, a fala como a função utilitária e o canto como a função artística da
matéria produzida pelo aparelho fonador.
As
partes do corpo envolvidas na produção da fala, portanto, que compõem o
aparelho fonador, são os pulmões, traqueia, laringe, epiglote, cordas vocais,
glote, faringe, véu palatino, palato duro, língua, dentes, lábios, mandíbula e
cavidade nasal. Todo esse aparato utiliza-se das correntes de ar pulmonar,
glotal e velar para produzir uma fonte de energia acústica modificada por ações
articulatórias. Quando, ao falar, emitimos vogais, permitimos a passagem
relativamente livre do ar, e, quando emitimos consoantes, o ar é obstruído de
alguma maneira.
Todos esses
órgãos, no momento em que servem à fonação, cumprem sua função precípua que é a
de falar. E, quando falamos, nossa energia de emissão é pequena, pois visa à
audição de um interlocutor que, salvo situações extraordinárias, encontra-se a
uma pequena distância. No entanto, quando um cantor de ópera coloca todo esse
aparato em função do canto, ele emite a palavra cantada numa intensidade que
gira em torno de 90 decibéis para atingir um público de aproximadamente 1500
pessoas e suplantar a energia de emissão de toda a orquestra. Dessa maneira,
altera toda a articulação dos órgãos do aparelho fonador e seu modo de
obstrução e liberação das correntes de ar. O resultado é o comprometimento da
inteligibilidade do texto. Por várias vezes, em cursos e palestras, solicitei
ao público que identificasse (sem citar o nome e a autoria da obra) a língua em
que é cantada a Ária (cantilena) das “Bachianas Brasileiras Nº 5”, de Heitor
Villa-Lobos. Ouvi as repostas mais variadas, mas nunca que se tratava da língua
portuguesa. Além disso, as óperas são cantadas geralmente em italiano, alemão e
russo, fato que, juntamente com o exposto imediatamente acima, talvez seja a
primeira barreira que se põe à frente do destinatário “não iniciado”. (continua
nos dois próximos artigos)
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Artigo originalmente escrito para a revista O
III Berro.