segunda-feira, 10 de junho de 2024

Braguinha, Maracanã, Márcio Coelho e Ana Favaretto


 

         Carlos Alberto Ferreira Braga. Este é o nome com o qual foi batizado o nosso admirável cancionista "Braguinha". Se ainda fosse vivo, Braguinha completaria, este anos, 117 anos de idade. Dos 98 anos vividos, Braguinha dedicou 79 à canção popular brasileira.

         O apelido "João de Barro" - nome de um, também famoso, passarinho - Braguinha inventou para si quando fundou, junto com Almirante e Noel Rosa, o conjunto "Bando de Tangarás". Tangará também é o nome de uma ave. Pois bem, Braguinha propôs ao grupo que todos escolhessem o nome de um pássaro para usar como apelido. A ideia não foi aceita e somente Braguinha carregou para o resto da vida o apelido "João de Barro"; nada mal para quem declarou que fazia, assobiando, a melodia de suas canções.

         Braguinha compôs muitas canções de sucesso: Sambas, sambas-canções, marchas, boleros, mas seu forte  era a marchinha de carnaval. Compôs "As Pastorinhas", "Yes, nós temos bananas", "Eu fui às touradas em Madri", "Tem gato na Tuba", e muitas, muitas outras, sozinho ou com memoráveis parceiros como Alberto Ribeiro e Noel Rosa.

Muitas histórias são ligadas ao nome de Braguinha, mas eu vou contar pra vocês uma muito especial.

         Na triste copa do mundo de 1950, o Brasil estava jogando contra a Espanha - que, naquele ano, tinha montado um time de amedrontar qualquer seleção -  quando, surpreendentemente, o Brasil fez 1, 2, 3 gols. A torcida já delirava, quando o Brasil marcou o quarto gol e as 200 mil pessoas...Vou repetir: as 200 mil pessoas que assistiam ao jogo no Maracanã, começaram a cantar: "Eu fui às touradas em Madri/ Parará-tchim-bum-bum-bum / Parará-tchim-bum-bum-bum/ E quase não volto mais aqui/ Pra ver Peri beijar Ceci". Somente um rapaz branquinho, nas cadeiras, continuava parado, quietinho... Algumas pessoas começaram a falar: "Ensina esse espanhol aí a cantar!", "Olha só como ele está quieto, só pode ser espanhol!". Aquele espanhol, na verdade, era um dos maiores brasileiros de todos os tempos, que, naquele momento, não conseguia cantar a sua própria composição, por ter a voz embargada pela emoção.

         Braguinha, que se ofendia, juntamente com o pessoal do conjunto "Flor do Tempo" e do "Bando de Tangarás", quando lhes ofertavam dinheiro para tocar - pois faziam música por amor e, não, por dinheiro -, acabara de receber o maior pagamento de sua carreira: Assistira ao Maracanã lotado cantar uma canção de sua autoria.

         Nas décadas seguintes, com a decadência dos grandes musicais para teatro, Braguinha passa a fazer textos e dublagens para os desenhos animados de Walt Disney. Além de dublar, dirigiu as gravações de "Branca de Neve", "Pinóquio", "Bambi" e "Gata Borralheira". Como prova de reconhecimento da qualidade de seu trabalho no Brasil, o próprio Walt Disney lhe enviou um relógio de ouro, com dedicatória.

         Desde então, Braguinha passou a se dedicar, também, a produções voltadas para crianças. Suas adaptações de histórias, enriquecidas por canções compostas por ele, foram responsáveis pelo sucesso do selo "Disquinho". A "Coleção Disquinho" era o produto da Gravadora Continental que mais vendia. Braguinha adaptou "O Macaco e a velha", "A história da Dona Baratinha", "A História do Chapeuzinho vermelho", "Festa no Céu", dentre outras histórias famosas. Os disquinhos (compactos simples) foram responsáveis por embalar o sonho e a imaginação criativa de muitas crianças, até que todas elas pudessem, como acontece hoje em dia, assistir aos desenhos animados, em vez de imaginar como seriam os personagens, o cenário, o figurino etc. Coisas do progresso.

         Há exatos 20 anos, Márcio Coelho e Ana Favaretto apresentaram suas versões ao vivo da Coleção Disquinho, no SESC - Ribeirão Preto. As apresentações aconteceram no auditório e contaram sempre com a participação de um convidado da dupla. Com esses espetáculos, colaboramos com o compromisso do SESC de oferecer entretenimento de qualidade, respeitando a capacidade intelectual da crianças. Foi um sucesso!

Viva o Braguinha!

Viva o SESC!

 

 

 

 

sexta-feira, 19 de abril de 2024

“Grandes óperas não toleram nem um minuto de atraso... Bom motivo para não ir.” (terceira parte)

 

                                  


                Como vimos no artigo anterior, a tecnologia foi fator preponderante para que João Gilberto pudesse imprimir uma nova bossa ao canto, uma maneira de cantar que privilegiasse a inteligibilidade do componente lingüístico da canção em detrimento dos malabarismo vocais.

            Como afirma Luiz Tatit, em um artigo intitulado "Quatro Triagens e Uma Mistura", foi uma triagem de cunho tecnológico que possibilitou a gênese da canção popular brasileira, pois, não fosse o trabalho pioneiro do tcheco naturalizado brasileiro Fred Figner e sua gravadora "Casa Edson", as canções criadas principalmente na casa da Tia Ciata não teriam tido a oportunidade de registro, posto que - como de fato até os dias atuais - os cancionistas nunca se ocuparam do pentagrama para suas criações, muito menos se preocuparam em aprender a ler e escrever para que pudessem registrar suas melodias.

            A essa altura o leitor deve está se perguntando: Não é necessário "saber música" para ser um bom músico?  Para ser um bom músico, sim. Todavia, nesta série de artigos, estamos tratando daquele que equilibra texto e melodia; daquele que estabiliza as entonações da fala transformando-as em melodias, ou seja, do cancionista. Está provado que o pré-requisito para que um ser humano componha uma canção popular é ter o domínio da fala, isto é, todo indivíduo que sabe falar é um cancionista em potencial. Claro que a  habilidade com a matéria musical aliada  à competência locutória produzem os  destaques e as distinções no âmbito cancional.

            Toda essa grande introdução tencionou preparar o terreno para as seguintes indagações: Será que já não seria hora de os cantores líricos lançarem mão deste maravilhoso instrumento de amplificação da voz chamado microfone? Imagino que o leitor deva estar novamente inquieto, pensando: Mas não é isso que "Os Três Tenores" vêm fazendo? Eu esclareço. Quando falo em lançar mão do microfone, não estou querendo inventar novamente a roda, e, sim, investigar se, com sua ajuda, não seria possível aos cantores líricos diminuir os esforços de projeção da voz, atenuando, dessa maneira, as alterações das articulações dos órgãos do aparelho fonador, fato que garantiria uma melhor inteligibilidade do texto verbal das peças por eles interpretadas. Ou será que tal alteração na energia de emissão dessas peças constituiria uma heresia? Certo é que o público ganharia uma maior possibilidade de fruição.

            Por falar em fruição, será que nossos hábeis letristas não seriam capazes de fazer traduções desses textos para que nós, pobres mortais, pudéssemos assistir a uma ópera compreendendo aquilo que está sendo cantado? Ou será que tal proposta, embora factível, mantém-se virtual, pois, caso fosse levada a cabo, macularia as indeléveis obras-primas do bel canto?   

            Todos devem se lembrar de que Caetano Veloso, na letra de sua magnífica canção "Língua", disse o seguinte: "Se você tem uma ideia incrível!,/ é melhor fazer uma canção/ está provado que só é possível/ filosofar em alemão". Ao que tudo indica, parece que só é possível cantar ópera em italiano, alemão e francês.

            Como não pretendo escrever a quarta parte deste artigo, devo tecer as considerações finais.

            Primeiro, não tenho nada contra as óperas e sim contra aqueles que, acreditando serem devotos de uma arte superior, menosprezam o nosso produto cultural mais bem acabado, a  saber a canção popular brasileira.

            Segundo, acredito verdadeiramente que, mais que intermináveis cursos de formação de público para as óperas clássicas, a tradução de seus textos para a língua portuguesa, juntamente com a utilização de um sistema de amplificação de voz, poderiam causar um real aumento de público para este tipo de espetáculo e a conseqüente melhora da autoestima daquele  espectador em potencial que se ressente de não "entender de ópera".

            Pra terminar, gostaria de lembrar ao público leitor que a roupa de gala e o semblante sisudo são dispensáveis para que se possa ter prazer ao assistir espetáculos operísticos.

 

Leia os dois artigos anteriores que fazem parte desse conjunto de três artigos nos links abaixo.

 

Parte 1: https://blogdomarciocoelho.blogspot.com/2023/11/grandes-operas-nao-toleram-nem-um.html

Parte 2: https://blogdomarciocoelho.blogspot.com/2024/01/grandes-operas-nao-toleram-nem-um.html

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

“Grandes óperas não toleram nem um minuto de atraso... Bom motivo para não ir.” Parte 2

Sento para escrever este artigo sob o efeito da leitura de um “box”, publicado em 9/01/2004, no caderno Folha Ciência”, do jornal Folha de São Paulo, que, por estar em perfeita consonância com o artigo anterior e com o que eu escreverei, apresento-o ipsis literis[1]

 

 

"Sopranos cantam alto, mas perdem clareza, diz estudo

 

       Joe Wolfe, da Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália, mostrou, com a ajuda da física, por que é difícil entender a letra cantada pelas sopranos[2]  numa ópera.

     Segundo o pesquisador, essas cantoras foram treinadas para fazer sua voz alcançar sem microfones um teatro inteiro e conseguem a façanha aumentando dramaticamente o volume da voz, em detrimento da clareza do que é cantado. O estudo saiu na “Nature” de ontem.”

 

 

            Estranha-me o fato de o "Folha Ciência" alardear o resultado dos estudos do supracitado cientista australiano, sendo que, no Caderno "Sinapse" (também da Folha de São Paulo), de 30/09/2003, João Batista Natali já defendia o mesmo ponto de vista, diga-se de passagem, sem nenhuma singularidade. Fato é que, há muito, já conhecíamos os motivos que impedem a inteligibilidade do texto verbal da "música lírica", tanto que, lançando mão dos estudos lingüísticos, na primeira parte deste artigo, fiz a mesma afirmação que Joe Wolfe. Todavia, sabemos que quanto mais disciplinas puderem descrever um fenômeno, maior grau de cientificidade será conferido aos resultados obtidos por estudiosos. Deste ponto de vista, é muito bem-vinda a afirmação de Joe Wolfe.

            A palavra-chave que detonou a confecção da segunda parte deste artigo é "microfone" :  "para fazer sua voz alcançar sem microfones um teatro inteiro".

            Sabemos que a energia elétrica chegou ao Brasil em 1927, e tal advento, dentre outras coisas, revolucionou o mercado fonográfico, pois possibilitou a melhoria da qualidade da reprodução e da gravação de discos, por meio das gravações elétricas, em contraponto às gravações mecânicas, além de viabilizar as emissões radiofônicas. Não foi à toa que as décadas de 30 e 40 foram alcunhadas de "Era de Ouro da MPB", por consolidarem a forma da canção popular com que lidamos até hoje. Portanto, a construção da canção popular brasileira passa por esse pequeno aparelho que transforma energia sonora em energia elétrica, possibilitando, dessa maneira, a amplificação da voz humana.

            No entanto, os microfones que reproduziam a voz humana, mantendo suas características originais, ou seja, os microfones de alta fidelidade, surgiram somente na década de 50. O leitor já deve estar desconfiando de que tal fato tem a ver com a Bossa Nova. Pois é exatamente aí que eu quero chegar. Não fosse o advento do microfone de alta fidelidade, João Gilberto não lograria êxito ao instaurar um novo modelo de emissão vocal na canção popular brasileira. Os mais desavisados dirão que João canta da maneira que canta porque não tem voz. Mentira! João Gilberto, na década de 50, era componente de um grupo vocal chamado "Garotos da Lua", grupo no qual, além de cantar, era responsável por tirar de ouvido os arranjos dos grupos vocais estadunidenses e passá-los para os outros componentes . Na mesma época, "fazia cover" de Orlando Silva, ou seja, imitava o "Cantor das Multidões", aquele não fazia a menor cerimônia em projetar seus "dós de peito" em suas históricas apresentações, cuja platéia era formada por verdadeiras turbas.

            Portanto, João lançou mão da tecnologia para imprimir uma nova maneira de cantar que eliminava os excessos virtuosísticos dos aficionados do jazz; que evitava o batimento de ondas sonoras provocado pelos acordes com maior tensão harmônica (acordes popularmente conhecidos como acordes dissonantes) no acompanhamento da voz; que dava identidade ao cantor popular que, à essa época, somente era reconhecido como um grande cantor caso sua maneira de interpretar se aproximasse à dos "cantores líricos". Enfim, João, com seu inovador modo de cantar, aproximava o canto da fala; deixava transparecer a voz que falava por detrás da voz que cantava. Todo o texto verbal era verdadeiramente inteligível. Dessa maneira, João Gilberto, criava efeitos de veridicção, de dizer verdadeiro, pois todos reconheciam em seu canto, situações cotidianas de fala, e tal fato é aquilo que confere  o estatuto  popular à canção. (continua)

 



[1] A primeira parte do presente artigo foi a penúltima publicação deste blog.

[2] Voz feminina de registro mais agudo. Metonimicamente, a cantora que possui esse registro.